Insônia atinge 61,5% dos profissionais da linha de frente contra a pandemia, aponta USP
Estudo também mostra que enfermeiros são os mais propensos a desenvolver problemas com sono, além de ansiedade, depressão e estresse. Dados alertam para necessidade de maior apoio institucional a quem atua no combate à Covid-19.
Um estudo da USP de Ribeirão Preto (SP) aponta que 61,5% dos profissionais de saúde da linha de frente na pandemia da Covid-19 desenvolvem insônia.
Essa é uma das conclusões de uma pesquisa, recentemente publicada na revista científica Frontiers in Psychiatry (veja a íntegra do estudo em inglês), que também mostra elevados índices de sintomas de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, principalmente em enfermeiros de hospitais públicos.
Coordenadora do projeto e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP), a psicóloga Flávia Osório destaca que o estudo tem âmbito nacional e alerta para a necessidade de um maior suporte institucional a quem lida diariamente com pacientes infectados pelo novo coronavírus.
“Os profissionais de saúde foram vistos como heróis, a sociedade como um todo passou a valorizar muito a ação dessas pessoas, mas acho que de fato o que a gente precisa são de ações mais efetivas. É muito importante o reconhecimento, a valorização desse trabalho, mas o estudo mostra uma realidade que exige medidas institucionais, medidas de saúde pública para que de fato esses profissionais possam ser cuidados”, diz.

As conclusões reforçam o colapso mental dos profissionais de saúde apontado por especialistas de todo o mundo, diante da superlotação dos hospitais e dos números crescentes de infecções e mortes pelo novo coronavírus no ano passado. A situação também foi estudada pela Fundação Oswaldo Cruz, em que 43,2% dos profissionais entrevistados se disseram sem proteção à própria saúde.
Conclusões da pesquisa
Os dados foram coletados entre maio e agosto do ano passado com 916 pessoas de todas as regiões do país, entre enfermeiros, médicos e profissionais como terapeutas ocupacionais, psicólogos e farmacêuticos.
Nesse período, o número de casos confirmados da Covid-19 saltava de 271,6 mil para 3,6 milhões em todo o país, ao passo que as mortes dispararam de 17,9 mil para 114,7 mil.

“A gente não tinha chegado àquele pico maior [da pandemia], mas retratava aquela elevação alarmante em um momento em que a Covid era uma coisa muito desconhecida, muito assustadora. Então esses índices retratam aquele momento.”
Na pesquisa, os voluntários foram monitorados e responderam, pela internet, a perguntas relacionadas a fatores sociodemográficos, ambiente de trabalho, além de preocupações ligadas à pandemia e testes específicos para avaliação de sintomas de ansiedade, depressão, insônia e estresse pós-traumático que levaram às seguintes conclusões:
- 61,5% de todos os profissionais relataram problemas de insônia;
- 43,3% relataram sofrer de ansiedade;
- 40,2% disseram ter sintomas associados a depressão;
- 36% indicaram problemas ligados a estresse pós-traumático.
Dado mais alarmante da pesquisa, a taxa de insônia supera a observada em estudos similares realizados em países como China (36%), Nepal (33%) e Paraguai (27,8%).

“A gente usou questionários mundialmente utilizados e que foram também ao longo da pandemia utilizados em estudos ao redor do mundo, o que permite que os nossos dados possam ter uma comparação com outros indicadores nacionais.”
O estudo também conseguiu associar a incidência de sintomas de ansiedade, insônia e depressão a uma série de preocupações dos profissionais de saúde, entre elas:
- medo dos riscos de estar na linha de frente da pandemia;
- poder estar infectado com a Covid-19 e poder infectar familiares;
- desejo de deixar o emprego;
- cansaço e incapacidade de adotar estratégias de autocuidado;
- percepção de que as pessoas evitam o contato com trabalhadores da saúde.

Segundo Flávia, os resultados reforçam a ideia de que a pandemia potencializou a fragilidade emocional que já era comum entre os trabalhadores da saúde e muitas vezes é minimizada. A publicação cita estudos anteriores à crise sanitária que registravam taxas de até 28% nos distúrbios relatados.
Além disso, a pesquisa deixou evidente que médicos e enfermeiros, de um modo geral, estão insatisfeitos com as medidas de proteção adotadas pelos hospitais em que trabalham.
“A gente tem estudos que foram realizados mostrando fora do Brasil que o impacto da pandemia nesses profissionais foi muito superior aos profissionais que trabalham em qualquer outra área que não seja da saúde, mas ainda assim antes mesmo da pandemia essa é uma classe, pelas próprias características do trabalho, que mostra maiores indicadores de vulnerabilidade.”
Enfermeiros estão mais expostos
Os indicadores também mostram que os problemas de saúde mental têm maior prevalência entre os enfermeiros. A insônia é comum para 64,4% dos entrevistados, enquanto a ansiedade é relatada por 50,3% deles.
Nesse grupo, os percentuais de sintomas associados a depressão – 45,2% – e ao estresse pós-traumático – 38,9% – também são superiores quando comparados aos de médicos e de outros profissionais da área.
As características inerentes à profissão, com maior proximidade com os pacientes, estão entre os fatores que ajudam a explicar essa proporção.

Outra justificativa mencionada é que grande parte desses profissionais é formada por mulheres, que muitas vezes ainda ganham menos que os homens e acumulam outras demandas fora do ambiente de trabalho como o cuidado com os filhos e com a casa.
“Os enfermeiros se mostraram a categoria mais frágil não só no nosso estudo, mas nos estudos internacionais também. E isso talvez retrate um pouco a condição de trabalho da enfermagem, que praticamente é composta por trabalhadores do sexo feminino que por isso acabam trazendo outras demandas da vida pessoal. (…) Também no dia a dia esse cuidado mais intenso, mais próximo do paciente, mais constante, também acaba sendo feito pela enfermagem, então a gente acredita que essa característica também seja um fator que contribua para esses índices.”
Os distúrbios são ainda mais recorrentes, na avaliação da coordenadora do estudo, entre os profissionais mais jovens – na pesquisa, a probabilidade de não ter ansiedade e estresse aumentou até 5% a cada ano de experiência profissional – e que dividem a casa com familiares.
“A questão do morar parece estar muito associada, principalmente no início da pandemia, ao medo que as pessoas tinham de contaminar seus familiares, de voltar pra casa, contaminar um filho, contaminar um pai idoso.”
Quem atua no sistema público de saúde, que ao longo da pandemia protagonizou cenas de superlotação de leitos e filas, além da falta de remédios e de respiradores, também enfrenta um agravante associado à saúde mental.
“A realidade dos hospitais públicos em comparação à realidade dos hospitais privados muitas vezes é bastante destoante. No geral, os hospitais públicos carecem de recursos tanto humanos como de equipamentos. Os salários muitas vezes também são inferiores em relação aos profissionais que trabalham nas instituições privadas e isso possivelmente também impactou negativamente nessa condição emocional dos profissionais”, afirma a pesquisadora.
Em contraposição, perspectivas positivas e apoio por parte dos colegas foram considerados fatores de proteção pelo estudo da USP.
“Aqueles profissionais que trabalhavam, que no momento da pandemia, na linha de frente, mas guardavam uma expectativa positiva, de realização, de otimismo com o futuro profissional, seja do ponto de vista do seu desenvolvimento, de salários, de perspectivas pro futuro realmente mostraram indicadores menos elevados.”
Riscos
O elevado índice de relatos relacionados aos problemas de saúde mental, como os distúrbios com o sono, por exemplo, representa não só um risco para os profissionais, mas também para a qualidade das tarefas executadas dentro dos hospitais, alerta Flávia.
“Várias noites de sono mal dormidas têm um impacto muito grande no desempenho do trabalho. Muitos desses profissionais têm que lidar com condições de cuidado, de atenção na hora de separar medicações, na hora de aplicar medicações, então a gente aumenta a possibilidade de um trabalho sujeito a erros”, analisa.
Fora do ambiente de trabalho, esses sintomas podem repercutir em quadros depressivos mais graves e transtornos de ansiedade que tendem a dificultar o convívio social e até atividades cotidianas.
“Isso se reflete na vida pessoal do profissional, nos momentos que ele têm para viver outras coisas, para estar junto com o seu familiar, para estar desenvolvendo alguma atividade de lazer, de autocuidado, tudo isso também acaba ficando muito impactado.”
Dentro desse contexto, hospitais e pacientes também sentem os efeitos com o aumento nos afastamentos. Em cidades como Belo Horizonte (MG), por exemplo, um em cada dez profissionais de Saúde foi afastado por transtornos mentais durante a pandemia no ano passado.
“Os problemas de saúde mental acabam sendo um dos maiores responsáveis pela falta ao trabalho, pelos afastamentos trabalhistas pelo INSS, deixando descoberta a população que precisa do auxílio, que precisa do trabalho desses profissionais”, analisa a psicóloga.
Tratamentos
O tipo de tratamento a ser aplicado, segundo Flávia, pode começar com acompanhamento psicológico e psicoterapia, mas há casos em que é necessário o uso de medicações.
A pesquisadora avalia que hoje existem muitas iniciativas particulares e de ONGs que auxiliam nesse processo de reabilitação, mas por parte dos hospitais, de um modo geral, o apoio institucional ainda não é suficiente.
“O que a gente pode ver no nosso estudo é que a maior parte dos profissionais não estava satisfeita com aquilo que estava sendo oferecido a eles do ponto de vista institucional. Apenas 17% dos profissionais relataram estarem satisfeitos. Então, mais de 80% se mostraram insatisfeitos.”
No âmbito do estudo da USP, os participantes que apresentaram sintomas associados a doenças mentais receberam suporte de voluntários. Uma iniciativa que, de acordo com Flávia, demonstrou que o acompanhamento adequado pode ser um grande aliado. Para o grupo da enfermagem, por exemplo, as abordagens reduziram em até 50% o risco de problemas com ansiedade.
Segundo a pesquisa, questões específicas como gênero e condições ocupacionais devem ser levadas em conta para a elaboração de estratégias adequadas.
“A gente firmou uma parceria com a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, que passou a oferecer um trabalho de atendimento voluntário aos profissionais da saúde. Essa instituição também acolheu a nossa demanda da pesquisa e ofereceu atendimento gratuito a esses profissionais, um atendimento de apoio psicológico que fez muita diferença.”
Próximas etapas
O intuito dos pesquisadores é dar sequência aos estudos para avaliar o comportamento dos profissionais de saúde em outros momentos da pandemia. Após mais de um ano e meio, os mesmos voluntários foram submetidos a uma nova avaliação.
“São dados que a gente está trabalhando agora, mas o que eu posso adiantar é que de fato um aumento expressivo parece não ter havido mas também, o que é o ponto talvez mais crítico, não houve uma diminuição. (…) Talvez as iniciativas de cuidar da saúde mental desses profissionais também não foram de sucesso ou não aconteceram.”
(G1)



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